segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Na casa do "Jocunga"

Daqui a alguns dias, outra vez mais, sigo o rumo do sol e pra onde o coração aponta. E por repetido que se faça o ato “É sempre assim, essa desinquietude”, como disse o Tocaio Ferreira... “(...)Quem muda o pago, o coração não muda. Saudade é dura e a querência gruda” (Vou pra fora - A.A.F.)
Mas não é só pelo rural em si que se passam essas coisas com assinatura de saudade quando se pensa no pago da gente. Porque o campo, nesses fundos, está mesclado com a paisagem da cidade, já é logo ali, no que cruza a sanga da Jararaca. E do lado de cá também se pisa o pasto nas calçadas e praças interioranas e é possível caminhar sob a sombra de cinamomos nas vilas. Assim como sobre as pedras antigas em que se riscavam sapatas, sentindo o cheiro misturado de comida perto do meio dia onde as casas são sempre habitadas, grudadinhas e rentes às calçadas, e onde sempre se acha um saludo da vizinhança, sacudido pelo vento que sopra do rio quando se emboca a descer nas transversas da Rua das Tropas...
E mal comparando, a memória de quem é do interior me parece mais cheia, mais ampla do que o descompromisso do anonimato nas grandes cidades. Aqui nesses urbanismos as distâncias são maiores, e as vivências mais restritas.
No Alegrete vivi sempre entre campo e cidade. No povo morei na casa que foi de um poeta famoso, que depois foi de um ferreiro afamado. Na reforma foram encontradas algumas ferraduras enterradas no pátio... e nada de poemas. No outro rancho da campanha as paredes guardam memórias orgulhosas de um tio-avô que foi poupado na revolução por bravura; noutro canto havia armas fisgadas nas sangas em histórias de guerra e pescaria. Em riba do roupeiro ainda tem uma mala grande, cheia de fotos que povoavam nossas tardes de chuva com gosto de bolo frito feito na banha, ilustrando muitas histórias de vida. Tem também uma caixa onde são guardadas 3 ou 4 melodias mais floreadas do que tocadas dentro de uma oito baixos com um botão fanho, que agora não toca mais, por obra de uma faca castradeira que estragou o dedo do nosso gaiteiro, declamador e contador de causos. Os floreios são da autoria dele, baseados em alguma melodia já existente; os causos em sua maioria também, extraídos de histórias ouvidas, vividas, imaginadas ou aumentadas; os pedaços de poemas vinham de livros e papéis soltos na mala. Versos xucros sem muitos registros replicados, uns que o Chiquinho de Sales fazia pra vender nas carreiras ali da volta, outros do Jocunga... todos daquele feitio de dizer ao pé do fogo, que por sorte algum visionário fazia uma gravação ou prestava-se a escrever ditado pelo autor. Ah, esse lugarzito do pampa sim, é poesia! E a mescla disso com a prosa povoeira dá um caldo delicioso de vivenciar.
Falando disso, lembrei do final das férias quando saíamos contrariados do meio do arvoredo, embarcávamos na Rural verde e branca com a família, os amigos, os ajudantes, suas sacolas e mais uma carga de lenha pra passar o inverno, e nos tocávamos comendo poeira de volta pra o povo. Lá encostava a Rural pra despachar tudo isso, bem calçada no meio fio do casarão cheio de histórias da esquina desquinada, por desconfiança do freio e pra evitar que descesse outra vez desgovernada em direção ao Ibirapuitã.
Já onde moro agora, não sei quem morou, só achei muitos vestígios de gatos nas janelas e no carpete que arrancamos porque nos esgualepou os pulmões.  Pra dar nossa identidade, colei uma faixa guarda-pampa na janela, para identificar de onde olham o vidro desses olhos, como uma vincha na testa das casa. Arremedos de um antigo olhar quíchua pelas frinchas da selva de pedra.
É que trago presente, daquela cidade, daquela rua, daquela esquina as minhas maneiras... Lá a vida do interior teve uma medida mais exata do que na vastidão do campo. Tinha hora pra voltar, quando a mãe metia a cara pra fora do janelão da esquina. Que já não era tão “ão” porque na reforma foi cortado Quase à metade, assim como o pé-direito rebaixado em metro e meio, o assoalho aterrado com dezenas de caçambadas e o coqueiro do pátio que teve seus trinta metros fatiados pouco a pouco até tornar-se um toco rasteiro que só serve pra D. Marlene tropeçar enquanto estende as roupas (não sei de onde ela tira tanta roupa pra estender naquele monte de varal!). Além do próprio pátio, que já era só o meio do que antes fora quando minha família ali desembarcou. Megalomaníaco início do século XX que nos deixou essas trincheiras pra nos protegermos do que viria por diante.
Revivendo tudo isso, vinha embalando os pensamentos e andava ouvindo por esses dias a belezura do novo álbum do Vitor Ramil (Foi no mês que vem), naquela quantidade de estilos impressos, de riqueza musical, das influências e referências. E não preciso justificar os por quês dele ser um artista excepcional mesmo antes de eu assim considerá-lo... é cosmopolita e é interiorano, bem como eu admiro. Mas eu gosto em especial dele por motivos de fórum mais íntimo. O danado cantou as minhas casas e o sentimento que acompanha essas minhas memórias. Ele deu vida e roupagem nova à obra do João da Cunha Vargas, o poeta crioulo que morou lá no casarão da cidade onde cresci, Vitor Ramil inclusive registrou no seu “Dèlibab” as imagens desse lugar. Mas esses versos também viviam esparramados naquela mala antiga em riba do armário e de vez em quando ainda assaltam a memória do meu velho pra ilustrar algum causo.
Por isso eu fecho esse post com uma obra bem conhecida na voz do Vitor Ramil, que é o poema “Deixando o pago” do João da Cunha Vargas – o Jocunga, o poeta do Mariano Pinto, que talvez esteja tão presente em mim pela atmosfera que deixou sobre as pedras escuras e canteiros espalhados pelos cantos daquele pátio, quanto pelas tardes chuvosas ouvindo seus versos lá na campanha. Ou mesmo porque a sua fala cruda conversa bem de pertinho com o que há de mais essencial aqui dentro.


João da Cunha Vargas 1900-1980
“Falam muito no destino
Até nem sei se acredito
Eu fui criado solito
Mas sempre bem prevenido
Índio do queixo torcido
Que se amansou na experiência
Eu vou voltar pra querência
Lugar onde fui parido”