quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Para projetar uma tese de doutorado com os pés no pasto e os olhos de mirar longe e enxergar bem pertinho


 Pampa: um bioma e sua gente Fotos: Leandro Taques

O ambiente relacional da pecuária faz parte de minha formação pessoal e influenciou sobremaneira as escolhas pela formação profissional. O manejo do gado no sistema de cria (produção de terneiros) e de ovinos para lã nos campos arenosos de Alegrete deram a tônica de nossa organização familiar e referências culturais. Daí em diante tudo em minha vida esteve em comparação com essa experiência infanto-juvenil, entre o Lageado Grande e o Passo Novo.



  Porém, demarcadamente, haviam faltas e incoerências quando em contato com as representações do universo da pecuária, seja no convívio social dos CTGs, seja como objeto do conhecimento científico. As representações culturais e técnicas apresentavam versões sempre parciais, ausentes da compreensão global e do cenário tão diverso da pecuária. A minha impressão, como observadora desses outros meios onde convivi era sempre de que “é muito mais complexo do que isso!” “isso não tem a ver com o que vivi!”. Cheguei a concluir, a certa altura, de que seria assim mesmo, trabalharia com os aspectos que eram presentes nas narrativas da minha área de atuação profissional e o demais ficaria para as conversas informais e convívio artístico e familiar.

  E mesmo aí no circuscrito universo caseiro havia desconfortos: o fato de poder trabalhar e conviver com a peonada somente até certa idade e depois ser obrigada a frequentar espaços diferentes; a necessidade de esconder tudo o que revelava o meu ser mulher e de como esse universo era incômodo por ali (eu não podia castrar animais, tampouco manter relações com alguém que fosse castrar, deixaria tudo “impuro”). Algo do talhão da espiritualidade e referências religiosas revestia de pecado tudo o que tocasse com minha verdade mais íntima.E era de estranhar tanta crença nesses lugares onde a regra da Igreja é refutada, assim como muitas outras regras sociais. Cresci ouvindo que “padre, brigadiano e cavalo tobiano, só dá bom por engano. É o avesso à regra, é a normatividade pelo avesso. 
  E a surpresa que me causavam tais expressões, apesar de estarem apresentando-me ao meu mundo, traziam também outras regras da convivência campeira. Sempre fora necessário classificar as relações sociais entre “nós” e “essa gente”. “Nós” convivíamos com “essa gente”, frequentávamos as suas casas e eles as nossas; compartilhávamos a mesa, o mate e a cruza de truco; as crianças brincavam juntas e fazíamos a lida em conjunto. Mas havia diferenças abismais, quadras de campo, cabeças de gado e anos de escolaridade de diferença. 

  Durante o trabalho de pesquisa  do mestrado procurei fazer um relato o mais completo que as metodologias com as quais tive contato pudessem descrever, entender e analisar. Com o aporte da teoria dos Sistemas Agrários foi possível fazer uma análise bastante rica das dinâmicas sociais nos sistemas de produção pecuários do Pampa, que gerou dados e levantou questões que seguiram tendo relevância no decorrer de minha trajetória acadêmica.
  Contudo, no trabalho de formação de educadores e educadoras do campo, assim no contato com as comunidades das quais eram oriundos educandos (as) do curso de Licenciatura em Educação do Campo da Unipampa campus Dom Pedrito, do qual faço parte do grupo docente, ressurgiram narrativas de sujeitos do campo distintas das estudadas e registradas. A vinculação com o que fazia sentido para mim do universo da criação animal no Pampa redesenhou percepções e indagações. “Essa” agora era a “minha gente”? Afinal aquelas diferenças haviam se dissipado na arena dos conceitos e das lutas que havia travado desde que saí de casa? Ou eu continuava sendo a personificação da mulher branca, que pode pagar a empregada (em geral negra) para cuidar de sua casa e filhos enquanto sai para trabalhar; e continuava a contar com a renda da terra em caso de necessidade; e continuava a desenvolver minha formação e carreira partindo dessa plataforma de interseccionais privilégios e algumas desvantagens comparativas aos seres universais masculinos e brancos que compunham aquele “nós”. Eu continuava nesse lugar, mas agora o reconhecia.
  E a partir desde então é jogar-se num “que fazer”, com as armas que tenho: uma tese em construção; duas universidades para dar suporte e legitimar; rincões encolhidos ou imponentes entre cerros e coxilhas, cheios de histórias pulsantes de vida campeira, (as que já estão no retrato do gaúcho-rês-pingo-cusco ou aquelas escondidas no baixeiro, anuladas entre urdiduras e tramas das mãos femininas de bater tições nas madrugadas) prontas para serem contadas em prosa e verso. Esse é o fazer científico que faz sentido para mim.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Sobre esquilos e esquila

Fonte: http://maxpixel.freegreatpicture.com/Cute-Animal-Nature-Sweet-Lamb-Schaefchen-Sheep-861071
Aberta a temporada de tosquia!
E nesse tempo, como disse o Tio Telmo, "já clareia o dia com outro sabor."

Eu, particularmente, adoro o cheiro da lã, da lã misturada com a juta, adoro o som do "tzuac-tzuac" do martelo. Acessa memórias e emoções muito gostosas de uma infância com longas férias de verão lá nos campos dos areais. Pulando por cima da almanjarra, pulando e rindo que dava gosto levando velos pela cabeça dentro da bolsa.
Uma vez (eu tenho vergonha disso, tá bem?!) eu preparei um "número" para o pessoal da comparsa que esquilava por lá. Decorei a letra do Esquilador, do Telmo de Lima Freitas, um clássico! Subi nas bolsas que já estavam fechadas pra fazer de palco, botei um sorriso no carão de bolachinha Trakinas, peguei a letra que eu tinha copiado num papel cheio de desenhos bem caprichadinhos pra acompanhar, em caso de dúvida, e entoei o hino. Todos pararam, assistiram, aplaudiram e riram muito. Dei de presente pra eles o papel com a letra da música e saí muito satisfeita. Acho que a D. Zeloá, que era a única mulher que acompanhava a turma, deve ter guardado isso até hoje, assim como tem outras coisas que eu a regalei dessa época. Outro dia falo sobre ela, suas histórias merecem uma postagem específica.

Ontem cantei de novo esse hino no meu habitual show noturno, que faço diariamente para minha duplinha dormir quando a historinha, a oração e o escurinho não são suficientes para baixar os ânimos e deixar o sono chegar. Pedro Inácio pediu para ouvir uma música que eu gostava quando era criança e me veio essa passagem. Eu disse:
_Vou cantar uma sobre a esquila;
_ Esquila ou esquilo? Perguntou ele.
_ Não, meu filho... esquila, tosquia, quando se tira a lã das ovelhas.
_ E daí deixam em formato de esquilo? (Risos)
_ Nada a ver, guri!!
_ Foi o que eu imaginei, mãe!!
_ Escuta a música que tu vais ver como é...
Escutaram atentos, a mana capotou no meu colo e ele, que não captou muito bem a terminologia da letra e costuma alçar vôo na imaginação, seguiu com aquele risinho sobre esquilar ovelhas para deixá-las parecidas com esquilos. Boa noite e fomos dormir.

Mas não saía da minha cabeça o fato de que meu filho não fazia idéia do que era uma tosquia, não conhecia aqueles cheiros, sons, vivências, sabores que menciona a música. Ele sabe o que é um esquilo, um animal que não faz parte da nossa realidade, mas não tem noção do que é a esquila. Ele nasceu no Alegrete, lá moramos na campanha e criávamos ovelhas. Giramos um pouco por aí e agora, parafraseando o Tio Telmo "voltamos pra fronteira, pra nos encontrar". Estamos em Dom Pedrito e temos acompanhado de perto o movimento da compra de lãs, produção de fios e confecção de tecelagem com uma família de amigos daqui. Imaginei que ele, por ver tudo isso, estivesse inserido. Que nada! Criança precisa meter a mão, vivenciar essas sensações muitas vezes, fazer parte, pra registrar na mente e no coração.
Os desenhos animados, os cadernos didáticos, os programas televisivos de todo dia apresentam e trazem ao convívio da gurizada essa bicharada e contextos que nada tem a ver com o concreto de seus cotidianos.

Nesse mês as escolas trabalharam aqui o dia da criança, Nossa Senhora Aparecida, e essa semana a temática que toma eco é o Halloween. Todos falarão termos em inglês, falarão termos como "travessuras", comprarão vestimentas de zumbis e bruxas. Mas não haverá menção a aventais de estopa, toucas de lenço atado nas quatro pontas, nem tampouco criançada manuseando na lã (daria pra trabalhar conteúdo escolar e fazer um bocado de atividades de estímulo, né?) Enquanto isso, alheios à sua atenção, começam a passar nas estradas da cidade os caminhões carregados de bolsas de lã.

Pois é, vai ter que ser conosco mesmo, não vai dar pra esperar que a escola se atente, que a Disney reedite um Pateta Gaucho ou a tv mencione cultura e realidades regionais. A gurizada precisa mesmo saber da origem das coisas, adentrar o rural dessa fronteira para ver e sentir o seu universo real, ver de onde vem a carne, a mandioca e a matéria prima que é trabalhada no verão para compor cobertas e agasalhos no nosso inverno pampeano.
Alguém nos acompanha?

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Na casa do "Jocunga"

Daqui a alguns dias, outra vez mais, sigo o rumo do sol e pra onde o coração aponta. E por repetido que se faça o ato “É sempre assim, essa desinquietude”, como disse o Tocaio Ferreira... “(...)Quem muda o pago, o coração não muda. Saudade é dura e a querência gruda” (Vou pra fora - A.A.F.)
Mas não é só pelo rural em si que se passam essas coisas com assinatura de saudade quando se pensa no pago da gente. Porque o campo, nesses fundos, está mesclado com a paisagem da cidade, já é logo ali, no que cruza a sanga da Jararaca. E do lado de cá também se pisa o pasto nas calçadas e praças interioranas e é possível caminhar sob a sombra de cinamomos nas vilas. Assim como sobre as pedras antigas em que se riscavam sapatas, sentindo o cheiro misturado de comida perto do meio dia onde as casas são sempre habitadas, grudadinhas e rentes às calçadas, e onde sempre se acha um saludo da vizinhança, sacudido pelo vento que sopra do rio quando se emboca a descer nas transversas da Rua das Tropas...
E mal comparando, a memória de quem é do interior me parece mais cheia, mais ampla do que o descompromisso do anonimato nas grandes cidades. Aqui nesses urbanismos as distâncias são maiores, e as vivências mais restritas.
No Alegrete vivi sempre entre campo e cidade. No povo morei na casa que foi de um poeta famoso, que depois foi de um ferreiro afamado. Na reforma foram encontradas algumas ferraduras enterradas no pátio... e nada de poemas. No outro rancho da campanha as paredes guardam memórias orgulhosas de um tio-avô que foi poupado na revolução por bravura; noutro canto havia armas fisgadas nas sangas em histórias de guerra e pescaria. Em riba do roupeiro ainda tem uma mala grande, cheia de fotos que povoavam nossas tardes de chuva com gosto de bolo frito feito na banha, ilustrando muitas histórias de vida. Tem também uma caixa onde são guardadas 3 ou 4 melodias mais floreadas do que tocadas dentro de uma oito baixos com um botão fanho, que agora não toca mais, por obra de uma faca castradeira que estragou o dedo do nosso gaiteiro, declamador e contador de causos. Os floreios são da autoria dele, baseados em alguma melodia já existente; os causos em sua maioria também, extraídos de histórias ouvidas, vividas, imaginadas ou aumentadas; os pedaços de poemas vinham de livros e papéis soltos na mala. Versos xucros sem muitos registros replicados, uns que o Chiquinho de Sales fazia pra vender nas carreiras ali da volta, outros do Jocunga... todos daquele feitio de dizer ao pé do fogo, que por sorte algum visionário fazia uma gravação ou prestava-se a escrever ditado pelo autor. Ah, esse lugarzito do pampa sim, é poesia! E a mescla disso com a prosa povoeira dá um caldo delicioso de vivenciar.
Falando disso, lembrei do final das férias quando saíamos contrariados do meio do arvoredo, embarcávamos na Rural verde e branca com a família, os amigos, os ajudantes, suas sacolas e mais uma carga de lenha pra passar o inverno, e nos tocávamos comendo poeira de volta pra o povo. Lá encostava a Rural pra despachar tudo isso, bem calçada no meio fio do casarão cheio de histórias da esquina desquinada, por desconfiança do freio e pra evitar que descesse outra vez desgovernada em direção ao Ibirapuitã.
Já onde moro agora, não sei quem morou, só achei muitos vestígios de gatos nas janelas e no carpete que arrancamos porque nos esgualepou os pulmões.  Pra dar nossa identidade, colei uma faixa guarda-pampa na janela, para identificar de onde olham o vidro desses olhos, como uma vincha na testa das casa. Arremedos de um antigo olhar quíchua pelas frinchas da selva de pedra.
É que trago presente, daquela cidade, daquela rua, daquela esquina as minhas maneiras... Lá a vida do interior teve uma medida mais exata do que na vastidão do campo. Tinha hora pra voltar, quando a mãe metia a cara pra fora do janelão da esquina. Que já não era tão “ão” porque na reforma foi cortado Quase à metade, assim como o pé-direito rebaixado em metro e meio, o assoalho aterrado com dezenas de caçambadas e o coqueiro do pátio que teve seus trinta metros fatiados pouco a pouco até tornar-se um toco rasteiro que só serve pra D. Marlene tropeçar enquanto estende as roupas (não sei de onde ela tira tanta roupa pra estender naquele monte de varal!). Além do próprio pátio, que já era só o meio do que antes fora quando minha família ali desembarcou. Megalomaníaco início do século XX que nos deixou essas trincheiras pra nos protegermos do que viria por diante.
Revivendo tudo isso, vinha embalando os pensamentos e andava ouvindo por esses dias a belezura do novo álbum do Vitor Ramil (Foi no mês que vem), naquela quantidade de estilos impressos, de riqueza musical, das influências e referências. E não preciso justificar os por quês dele ser um artista excepcional mesmo antes de eu assim considerá-lo... é cosmopolita e é interiorano, bem como eu admiro. Mas eu gosto em especial dele por motivos de fórum mais íntimo. O danado cantou as minhas casas e o sentimento que acompanha essas minhas memórias. Ele deu vida e roupagem nova à obra do João da Cunha Vargas, o poeta crioulo que morou lá no casarão da cidade onde cresci, Vitor Ramil inclusive registrou no seu “Dèlibab” as imagens desse lugar. Mas esses versos também viviam esparramados naquela mala antiga em riba do armário e de vez em quando ainda assaltam a memória do meu velho pra ilustrar algum causo.
Por isso eu fecho esse post com uma obra bem conhecida na voz do Vitor Ramil, que é o poema “Deixando o pago” do João da Cunha Vargas – o Jocunga, o poeta do Mariano Pinto, que talvez esteja tão presente em mim pela atmosfera que deixou sobre as pedras escuras e canteiros espalhados pelos cantos daquele pátio, quanto pelas tardes chuvosas ouvindo seus versos lá na campanha. Ou mesmo porque a sua fala cruda conversa bem de pertinho com o que há de mais essencial aqui dentro.


João da Cunha Vargas 1900-1980
“Falam muito no destino
Até nem sei se acredito
Eu fui criado solito
Mas sempre bem prevenido
Índio do queixo torcido
Que se amansou na experiência
Eu vou voltar pra querência
Lugar onde fui parido” 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O ñandú não foi na semana farroupilha...

Eu fui no 20 de setembro do Alegrete. Dei uma bailada, preparei meu mate e passei a manhã inteira assistindo o desfile (meu filho cruzou um gauchito muy lindo), mas teve gente que não foi... Gente que tem identidade regional, que vive a realidade da campanha, gente campeira, por assim dizer.
Teve um gaúcho, conhecido meu, que como muitos outros estava casereando nesse dia. Nesse dia as estancias se esvaziam, a campanha então fica sob os cuidados daqueles que sempre foram seus guardiões: os gaúchos a pé. Desses que são descendentes daqueles que andavam pelos campos carregando pedras pra fazer cercas e demarcar os limites, sem nem observar os seus.
Assim é aquele mulato velho que de quando em vez casereia lá pelo Lageado Grande. Sua graça é Abrilino Silva (não havia outro sobrenome pra colocar nos documentos feitos após os 50 anos que, avaliamos, já tivesse quando obteve o registro). Não tem honra de domador, nem sina de peão, nem tampouco cavalo de monta ou de tiro. Se foi personagem ou figurante em estórias, deve ter sido nalguma passagem da trilogia do Cyro Martins.
 O Abrilino é um andante, literalmente. Diz que nasceu em São Chico (não se sabe pois não tem o talho na cara, marca registrada de assisiense) e esteve caminhando entre lá e Alegrete nesses últimos 60 anos. A sua mãe tinha mais uns quantos negrinhos e entregou esse para um carroceiro que foi vender uns badulaques... decerto pra que pagasse em trabalho alguma conta. Ele relata que tem na memória a cena de chorar vendo a mãe ficar distante na estrada e a sua vida pegar o mesmo rumo daquela carroça desajeitada.
 Tem um quarto reservado na casa do meu pai e de mais uns dois ou três estabelecimentos daquela volta dos areais. Pra deixar um tanto de suas roupas bem lavadas e as ferramentas de trabalho para os serviços de capina das lavouras de melancia, limpeza de campo, corte de lenha no mato, e demais coisas manuais que outros trabalhadores do campo mais remediados demandam e ninguém vai fazer a não ser esses teatinos. São estratos sociais que a história gaúcha disfarça a existência e faz uma salada pra inventar peões e estancieiros da imaginação e para as fantasias desses presentes setembros. 
Ele é analfabeto, tentamos ensiná-lo ao menos o básico, mas tinha muita vergonha e falta de paciência. Fala como uma matraca em intermináveis e gritados monólogos caminhados. Não pára muito tempo, bem ligeiro arruma briga e antipatiza da peonada. Poderia ser folclórico, e simplesmente engraçado, como normalmente se enquadra nas chacotas dos vizinhos e das crianças da localidade (o Abrilino louco, o Abrilino rastilho - em função dos poucos dentes). Mas é triste e séria a situação de miséria e exploração dessa gente.
 Certa vez recebemos um telefonema do hospital de Alegrete, avisando que havia um senhor internado e forneceu nosso número para contato. Era o Abrilino com infecção intestinal e desnutrido. Quase um quilo de semente de pitanga entupindo o coitado depois de dias cortando campo a pé.
 Encaminhamos a sua documentação para garantir um benefício social em função de sua saúde mental comprometida, na interpretação simplista dele, "pra aposentar por lôco". E, nesse processo, havia algumas entrevistas com psiquiatras e outros médicos. Logo de início uma mocita de jaleco lhe questiona no consultório:
 _ Então o senhor trabalha de peão campeiro?
  Ele fez uma pausa, baixou a cabeça pra procurar lá dentro uma explicação pra ignorância daquela moça em relação ao campo dos pobres. E saltou com essa:
_ Peão, não, que a minha lida é outra. Eu sou serviçal, do cabo das coisa, não me ajusto. E campeiro, sim, que eu vivo no campo, conheço as macega, os jujo e os mato. Comparação, é um "andú", entende?! Que anda cruzando os campo pelo meio das cerca, mas não pede licença nem dá muita satisfação.
 Acho que a resposta dele não se enquadrava no formulário do SUS. Mas como depois do intróito de avestruz fugindo da boleadeira deslindou uma choradeira contando das cicatrizes e lembranças do relho do "padrasto" e da carroça, do seu passado de escravinho disfarçado de filho de criação, dos mates azedos nas madrugadas sem sossego, e um monte de falas que não se conseguia decifrar o sentido exato... a moça já largou o Abrilino com um calmante no bolso e um encaminhamento para receber o tal benefício.
  Seguiram ele e minha mãe pra o banco abrir uma conta pra receber mensalmente a migalha de afugentar avestruz da chácara. Ele senta à frente da mesa do atendente onde havia um potezito de caramelos, sacou um e se recostou na cadeira, um pouco mais importante do que antes. Lá pelas tantas a bala se reboleou mal na boca e colou na chapa que havia estreado para a entrevista de há pouco. Ele prontamente meteu mão na boca, sacou aquela dentadura que mais estava atrapalhando do que ajudando na sua função e soltou em cima da mesa do bancário. Minha mãe pegou aquilo num pulo e pediu que ele guardasse. Ele percebeu a gafe e comentou que não tinha "modos de cidade".

 O Abrilino se enquadrou perfeitamente naquela metáfora de avestruz . E sabe que esses bichos do campo não tem lugar na cidade, nem nos parques de exposição. Lá na campanha ainda dá pra seguir meio fugido, convivendo entre gente e criações, cruzando cerca e migalhando o sustento.

  Lembrei de falar dele nesse setembro de gauchadas, depois do agosto da Expointer, locais onde esse ñandú campeiro não passa. Pensei nele bastante também na época que escrevia minha dissertação, falando dos tipos sociais do pampa e suas relações, para além das estâncias. Era um compromisso a descrição do pampa não apenas como o lugar dos arreios sobre cavalos, pra gado e ovelhas, mas também dos rincões e corredores da gente que desencilha o pingo (próprio ou alheio) e segue na enxada. Essa gente que está lá sempre que chegarmos, pois tem muito mais legitimidade de dizer que são pampeanos, assim como os ñandús e tatús peludos (que não são estrangeiros como as vacas, os cavalos e os estancieiros).

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Minha terra é o Pampa, Cheretã dos Charruas, universo da vida que nela habita, que por ela foi forjada e que a ela reconstrói num cotidiano secular. Aos homens e mulheres pampeanos, no esforço de compreendê-los em seu tempo e espaço abre-se esta ventana.

E para empezar os trabalhos, vamos falar dela, nosso meio de vida, objeto de estudo e contemplação, a minha terra. Pelas palavras versadas do Colmar Duarte ( ele é de Uruguaiana, mas isso a gente releva)


CHERETÃ

Meu amor pela Terra não é cego.
Não é paixão feroz, desenfreada.
Nem tem o espanto, o ciúme e a saudade  
Desse amor da primeira namorada.

Meu amor pela Terra não precisa
De clarins, estandartes e bandeiras;
Nem carimbos, registros e diplomas
Que lhe calcem esporas cantadeiras.

Meu amor pela Terra vem dos tempos,
Na memória dos gens que me dão forma;
Nas artérias que irrigam minha carne,
No sopro que dá luz à minha alma.

É um amor consciente da certeza
De quem sabe esse amor purificado
No convívio incestuoso partilhado
Com a Terra que é minha natureza.

Pacha Mama do Inca trucidado,
Cheretã do Charrua exterminado,
Chão sem fronteiras do meu universo;
Que vive em mim no barro do meu corpo
Que canta em mim nos sons desta garganta
E há de ficar pra sempre no meu verso.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Provincianos

É um belo dia de sol, depois de muitos dias sorumbáticos de agosto na capital dos gaúchos. Fecho os olhos, abro coração e ouvidos para harmonizar-me com a sinfonia da vida... E não adianta, por mais que seja frustrante e desolador, não consigo captar a beleza urbana. A sonoridade da cidade, em especial dessa grande cidade, não consegue ganhar meus ouvidos. Não dialoga com minhas memórias ou projeções, não concorda com meus anseios utópicos.

As metrópoles multimídia espalham seu padrão da fala, de hábitos, de vida. E não há maneira de me sentir parte disso. Final de tarde pode-se ir ao shopping ver um cinema, mas eu queria mesmo era puxar um banco pra frente das casa e tomar um amargo dando um saludo para quem passa. Final de semana pode-se colocar as coisas no carro e subir a serra ou descer para o litoral, conforme o tempo, mas a minha vontade era d’emalar os arreios e largar pra campanha com qualquer céu. Meus vizinhos estranham porque divido os sacos de laranjas, as dúzias de ovos e cozinhadas de mandioca que ganhamos pelas andanças.
Nós, provincianos desgarrados, somos assim, buscando na janela a inspiração pra falar dos galpões nos edifícios (parafraseando o “Guri do campo”). E não tem nada a ver com as fantasias “pilchadas até os dentes” do tradicionalismo, dentro das regras da cartilha. Isso é pura representação figurativa do que não é a realidade cotidiana do rural. Ou como a pesquisadora Renata Menasche (PGDR/UFRGS) classifica, são apenas rasgos de uma “tradição inventada”, tão falsa como a saia dos escoceses.

Esse jeito de ser não é gaúcho porque é do Rio Grande do Sul, é sim interiorano, é caboclo e é caipira, como se trataria em outros lugares do país. Porque a maior parte do nosso povo está em cidades de pequeno e médio porte e com características essencialmente rurais, só que o motor da sociedade é feito e guiado pelos urbanos. E aqui vale uma reflexão sobre o que se comenta das pequenas cidades, da necessidade de desenvolvimento e de propiciar acesso a bens e serviços para garantir qualidade de vida... Ora, se na capital anda-se nas belas ruas asfaltadas na velocidade da carroça e a civilidade xinga-se aos berros no trânsito; toma-se um coquetel de remédios para que os pulmões aguentem a poluição, a cabeça aguente o barulho e o corpo aguente a pressão; e quando termina a semana todos entopem as estradas pra fugir; ganha-se mais e gasta-se muito mais ainda. Há mais recursos, e há mais necessidade concentrada de utilizá-los. É isso que querem vender para o interior como cultura universal?
Quando conseguimos falar de nossa aldeia, conseguimos ser universais, isto sim! Porque nenhum “oh, de casa!” é necessário ser traduzido. Por isso não é contraditório ser provinciano e cosmopolita. Assim me sinto. Tenho a necessidade de conhecer outros lugares, dialogar com diferentes vertentes, porque sou desse tempo “pós”... pós-moderno, pós-industrial, de uma sociedade global que procura sua nova identidade no meio dessa miscelânea de crise ambiental na era da informação. Até blog eu fiz pra falar de terra!

Mas viver assim, amontoado, anônimo e embretado em meio ao concreto, não é para provincianos! Quero pensar que estou só de cruzada, tentando captar o que serve, mesmo que seja a saudade...

Vou tomar também as palavras do Mario Eleú, pra lembrar dos meus, de quem tanta saudade sinto nesses tempos de capital...

“Estende a mão, cumprimenta
Também retira o chapéu
Sabe quando muda o tempo
Bombeando as nuvens no céu
 Lá pras bandas da fronteira
 Se parece um João Barreiro
 Zeloso, cuida do pago
 Com cisma de peão caseiro. (...)

Provinciano, pêlo duro, te juro
Sei do teu amor sem fim
Por esta querência amada
E pela vida sossegada

Porque eu também sou assim (...)”