quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Para projetar uma tese de doutorado com os pés no pasto e os olhos de mirar longe e enxergar bem pertinho


 Pampa: um bioma e sua gente Fotos: Leandro Taques

O ambiente relacional da pecuária faz parte de minha formação pessoal e influenciou sobremaneira as escolhas pela formação profissional. O manejo do gado no sistema de cria (produção de terneiros) e de ovinos para lã nos campos arenosos de Alegrete deram a tônica de nossa organização familiar e referências culturais. Daí em diante tudo em minha vida esteve em comparação com essa experiência infanto-juvenil, entre o Lageado Grande e o Passo Novo.



  Porém, demarcadamente, haviam faltas e incoerências quando em contato com as representações do universo da pecuária, seja no convívio social dos CTGs, seja como objeto do conhecimento científico. As representações culturais e técnicas apresentavam versões sempre parciais, ausentes da compreensão global e do cenário tão diverso da pecuária. A minha impressão, como observadora desses outros meios onde convivi era sempre de que “é muito mais complexo do que isso!” “isso não tem a ver com o que vivi!”. Cheguei a concluir, a certa altura, de que seria assim mesmo, trabalharia com os aspectos que eram presentes nas narrativas da minha área de atuação profissional e o demais ficaria para as conversas informais e convívio artístico e familiar.

  E mesmo aí no circuscrito universo caseiro havia desconfortos: o fato de poder trabalhar e conviver com a peonada somente até certa idade e depois ser obrigada a frequentar espaços diferentes; a necessidade de esconder tudo o que revelava o meu ser mulher e de como esse universo era incômodo por ali (eu não podia castrar animais, tampouco manter relações com alguém que fosse castrar, deixaria tudo “impuro”). Algo do talhão da espiritualidade e referências religiosas revestia de pecado tudo o que tocasse com minha verdade mais íntima.E era de estranhar tanta crença nesses lugares onde a regra da Igreja é refutada, assim como muitas outras regras sociais. Cresci ouvindo que “padre, brigadiano e cavalo tobiano, só dá bom por engano. É o avesso à regra, é a normatividade pelo avesso. 
  E a surpresa que me causavam tais expressões, apesar de estarem apresentando-me ao meu mundo, traziam também outras regras da convivência campeira. Sempre fora necessário classificar as relações sociais entre “nós” e “essa gente”. “Nós” convivíamos com “essa gente”, frequentávamos as suas casas e eles as nossas; compartilhávamos a mesa, o mate e a cruza de truco; as crianças brincavam juntas e fazíamos a lida em conjunto. Mas havia diferenças abismais, quadras de campo, cabeças de gado e anos de escolaridade de diferença. 

  Durante o trabalho de pesquisa  do mestrado procurei fazer um relato o mais completo que as metodologias com as quais tive contato pudessem descrever, entender e analisar. Com o aporte da teoria dos Sistemas Agrários foi possível fazer uma análise bastante rica das dinâmicas sociais nos sistemas de produção pecuários do Pampa, que gerou dados e levantou questões que seguiram tendo relevância no decorrer de minha trajetória acadêmica.
  Contudo, no trabalho de formação de educadores e educadoras do campo, assim no contato com as comunidades das quais eram oriundos educandos (as) do curso de Licenciatura em Educação do Campo da Unipampa campus Dom Pedrito, do qual faço parte do grupo docente, ressurgiram narrativas de sujeitos do campo distintas das estudadas e registradas. A vinculação com o que fazia sentido para mim do universo da criação animal no Pampa redesenhou percepções e indagações. “Essa” agora era a “minha gente”? Afinal aquelas diferenças haviam se dissipado na arena dos conceitos e das lutas que havia travado desde que saí de casa? Ou eu continuava sendo a personificação da mulher branca, que pode pagar a empregada (em geral negra) para cuidar de sua casa e filhos enquanto sai para trabalhar; e continuava a contar com a renda da terra em caso de necessidade; e continuava a desenvolver minha formação e carreira partindo dessa plataforma de interseccionais privilégios e algumas desvantagens comparativas aos seres universais masculinos e brancos que compunham aquele “nós”. Eu continuava nesse lugar, mas agora o reconhecia.
  E a partir desde então é jogar-se num “que fazer”, com as armas que tenho: uma tese em construção; duas universidades para dar suporte e legitimar; rincões encolhidos ou imponentes entre cerros e coxilhas, cheios de histórias pulsantes de vida campeira, (as que já estão no retrato do gaúcho-rês-pingo-cusco ou aquelas escondidas no baixeiro, anuladas entre urdiduras e tramas das mãos femininas de bater tições nas madrugadas) prontas para serem contadas em prosa e verso. Esse é o fazer científico que faz sentido para mim.

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