Eu
fui no 20 de setembro do Alegrete. Dei uma bailada, preparei meu mate e passei
a manhã inteira assistindo o desfile (meu filho cruzou um gauchito muy lindo), mas
teve gente que não foi... Gente que tem identidade regional, que vive a
realidade da campanha, gente campeira, por assim dizer.
Teve
um gaúcho, conhecido meu, que como muitos outros estava casereando nesse dia.
Nesse dia as estancias se esvaziam, a campanha então fica sob os cuidados
daqueles que sempre foram seus guardiões: os gaúchos a pé. Desses que são
descendentes daqueles que andavam pelos campos carregando pedras pra fazer
cercas e demarcar os limites, sem nem observar os seus.
Assim
é aquele mulato velho que de quando em vez casereia lá pelo Lageado Grande. Sua
graça é Abrilino Silva (não havia outro sobrenome pra colocar nos
documentos feitos após os 50 anos que, avaliamos, já tivesse quando obteve o
registro). Não tem honra de domador, nem sina de peão, nem tampouco cavalo de monta
ou de tiro. Se foi personagem ou figurante em estórias, deve ter sido nalguma
passagem da trilogia do Cyro Martins.
O Abrilino é
um andante, literalmente. Diz que nasceu em São Chico (não se sabe pois não tem
o talho na cara, marca registrada de assisiense) e esteve caminhando entre lá e
Alegrete nesses últimos 60 anos. A sua mãe tinha mais uns quantos
negrinhos e entregou esse para um carroceiro que foi vender uns
badulaques... decerto pra que pagasse em trabalho alguma conta. Ele relata
que tem na memória a cena de chorar vendo a mãe ficar distante na estrada e a
sua vida pegar o mesmo rumo daquela carroça desajeitada.
Tem
um quarto reservado na casa do meu pai e de mais uns dois ou três
estabelecimentos daquela volta dos areais. Pra deixar um tanto de suas roupas
bem lavadas e as ferramentas de trabalho para os serviços de capina das
lavouras de melancia, limpeza de campo, corte de lenha no mato, e demais
coisas manuais que outros trabalhadores do campo mais remediados
demandam e ninguém vai fazer a não ser esses teatinos.
São estratos sociais que a história gaúcha disfarça a
existência e faz uma salada pra inventar peões e estancieiros da imaginação
e para as fantasias desses presentes setembros.
Ele é
analfabeto, tentamos ensiná-lo ao menos o básico, mas tinha muita vergonha e
falta de paciência. Fala como uma matraca em intermináveis e gritados monólogos
caminhados. Não pára muito tempo, bem ligeiro arruma briga e antipatiza da
peonada. Poderia ser folclórico, e simplesmente engraçado, como
normalmente se enquadra nas chacotas dos vizinhos e das crianças da localidade
(o Abrilino louco, o Abrilino rastilho - em função dos
poucos dentes). Mas é triste e séria a situação de miséria e exploração
dessa gente.
Certa
vez recebemos um telefonema do hospital de Alegrete, avisando que havia um
senhor internado e forneceu nosso número para contato. Era o Abrilino com
infecção intestinal e desnutrido. Quase um quilo de semente de pitanga
entupindo o coitado depois de dias cortando campo a pé.
Encaminhamos
a sua documentação para garantir um benefício social em função de sua
saúde mental comprometida, na interpretação simplista dele, "pra aposentar
por lôco". E, nesse processo, havia algumas entrevistas com psiquiatras e
outros médicos. Logo de início uma mocita de jaleco lhe questiona no
consultório:
_
Então o senhor trabalha de peão campeiro?
Ele fez uma pausa, baixou a cabeça pra procurar lá dentro uma explicação pra
ignorância daquela moça em relação ao campo dos pobres. E saltou com essa:
_
Peão, não, que a minha lida é outra. Eu sou serviçal, do cabo das coisa, não me
ajusto. E campeiro, sim, que eu vivo no campo, conheço as macega, os jujo
e os mato. Comparação, é um "andú", entende?! Que anda cruzando os
campo pelo meio das cerca, mas não pede licença nem dá muita satisfação.
Acho
que a resposta dele não se enquadrava no formulário do SUS. Mas como
depois do intróito de avestruz fugindo da boleadeira deslindou uma choradeira
contando das cicatrizes e lembranças do relho do "padrasto" e da
carroça, do seu passado de escravinho disfarçado de filho de criação, dos mates
azedos nas madrugadas sem sossego, e um monte de falas que não se conseguia
decifrar o sentido exato... a moça já largou o Abrilino com um calmante
no bolso e um encaminhamento para receber o tal benefício.
Seguiram ele e minha mãe pra o banco abrir uma conta pra receber mensalmente a
migalha de afugentar avestruz da chácara. Ele senta à frente da mesa do
atendente onde havia um potezito de caramelos, sacou um e se recostou na
cadeira, um pouco mais importante do que antes. Lá pelas tantas a bala se
reboleou mal na boca e colou na chapa que havia estreado para a entrevista de
há pouco. Ele prontamente meteu mão na boca, sacou aquela dentadura que mais
estava atrapalhando do que ajudando na sua função e soltou em cima da mesa do
bancário. Minha mãe pegou aquilo num pulo e pediu que ele
guardasse. Ele percebeu a gafe e comentou que não tinha "modos de
cidade".
O Abrilino se
enquadrou perfeitamente naquela metáfora de avestruz . E sabe que esses
bichos do campo não tem lugar na cidade, nem nos parques de exposição. Lá na
campanha ainda dá pra seguir meio fugido, convivendo entre gente e
criações, cruzando cerca e migalhando o sustento.
Lembrei de
falar dele nesse setembro de gauchadas, depois do agosto da Expointer, locais
onde esse ñandú campeiro não passa. Pensei nele bastante também na época que escrevia
minha dissertação, falando dos tipos sociais do pampa e suas relações, para
além das estâncias. Era um compromisso a descrição do pampa não apenas como o
lugar dos arreios sobre cavalos, pra gado e ovelhas, mas também dos
rincões e corredores da gente que desencilha o pingo (próprio ou alheio) e segue
na enxada. Essa gente que está lá sempre que chegarmos, pois tem muito mais
legitimidade de dizer que são pampeanos, assim como os ñandús e tatús peludos
(que não são estrangeiros como as vacas, os cavalos e os estancieiros).