segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O ñandú não foi na semana farroupilha...

Eu fui no 20 de setembro do Alegrete. Dei uma bailada, preparei meu mate e passei a manhã inteira assistindo o desfile (meu filho cruzou um gauchito muy lindo), mas teve gente que não foi... Gente que tem identidade regional, que vive a realidade da campanha, gente campeira, por assim dizer.
Teve um gaúcho, conhecido meu, que como muitos outros estava casereando nesse dia. Nesse dia as estancias se esvaziam, a campanha então fica sob os cuidados daqueles que sempre foram seus guardiões: os gaúchos a pé. Desses que são descendentes daqueles que andavam pelos campos carregando pedras pra fazer cercas e demarcar os limites, sem nem observar os seus.
Assim é aquele mulato velho que de quando em vez casereia lá pelo Lageado Grande. Sua graça é Abrilino Silva (não havia outro sobrenome pra colocar nos documentos feitos após os 50 anos que, avaliamos, já tivesse quando obteve o registro). Não tem honra de domador, nem sina de peão, nem tampouco cavalo de monta ou de tiro. Se foi personagem ou figurante em estórias, deve ter sido nalguma passagem da trilogia do Cyro Martins.
 O Abrilino é um andante, literalmente. Diz que nasceu em São Chico (não se sabe pois não tem o talho na cara, marca registrada de assisiense) e esteve caminhando entre lá e Alegrete nesses últimos 60 anos. A sua mãe tinha mais uns quantos negrinhos e entregou esse para um carroceiro que foi vender uns badulaques... decerto pra que pagasse em trabalho alguma conta. Ele relata que tem na memória a cena de chorar vendo a mãe ficar distante na estrada e a sua vida pegar o mesmo rumo daquela carroça desajeitada.
 Tem um quarto reservado na casa do meu pai e de mais uns dois ou três estabelecimentos daquela volta dos areais. Pra deixar um tanto de suas roupas bem lavadas e as ferramentas de trabalho para os serviços de capina das lavouras de melancia, limpeza de campo, corte de lenha no mato, e demais coisas manuais que outros trabalhadores do campo mais remediados demandam e ninguém vai fazer a não ser esses teatinos. São estratos sociais que a história gaúcha disfarça a existência e faz uma salada pra inventar peões e estancieiros da imaginação e para as fantasias desses presentes setembros. 
Ele é analfabeto, tentamos ensiná-lo ao menos o básico, mas tinha muita vergonha e falta de paciência. Fala como uma matraca em intermináveis e gritados monólogos caminhados. Não pára muito tempo, bem ligeiro arruma briga e antipatiza da peonada. Poderia ser folclórico, e simplesmente engraçado, como normalmente se enquadra nas chacotas dos vizinhos e das crianças da localidade (o Abrilino louco, o Abrilino rastilho - em função dos poucos dentes). Mas é triste e séria a situação de miséria e exploração dessa gente.
 Certa vez recebemos um telefonema do hospital de Alegrete, avisando que havia um senhor internado e forneceu nosso número para contato. Era o Abrilino com infecção intestinal e desnutrido. Quase um quilo de semente de pitanga entupindo o coitado depois de dias cortando campo a pé.
 Encaminhamos a sua documentação para garantir um benefício social em função de sua saúde mental comprometida, na interpretação simplista dele, "pra aposentar por lôco". E, nesse processo, havia algumas entrevistas com psiquiatras e outros médicos. Logo de início uma mocita de jaleco lhe questiona no consultório:
 _ Então o senhor trabalha de peão campeiro?
  Ele fez uma pausa, baixou a cabeça pra procurar lá dentro uma explicação pra ignorância daquela moça em relação ao campo dos pobres. E saltou com essa:
_ Peão, não, que a minha lida é outra. Eu sou serviçal, do cabo das coisa, não me ajusto. E campeiro, sim, que eu vivo no campo, conheço as macega, os jujo e os mato. Comparação, é um "andú", entende?! Que anda cruzando os campo pelo meio das cerca, mas não pede licença nem dá muita satisfação.
 Acho que a resposta dele não se enquadrava no formulário do SUS. Mas como depois do intróito de avestruz fugindo da boleadeira deslindou uma choradeira contando das cicatrizes e lembranças do relho do "padrasto" e da carroça, do seu passado de escravinho disfarçado de filho de criação, dos mates azedos nas madrugadas sem sossego, e um monte de falas que não se conseguia decifrar o sentido exato... a moça já largou o Abrilino com um calmante no bolso e um encaminhamento para receber o tal benefício.
  Seguiram ele e minha mãe pra o banco abrir uma conta pra receber mensalmente a migalha de afugentar avestruz da chácara. Ele senta à frente da mesa do atendente onde havia um potezito de caramelos, sacou um e se recostou na cadeira, um pouco mais importante do que antes. Lá pelas tantas a bala se reboleou mal na boca e colou na chapa que havia estreado para a entrevista de há pouco. Ele prontamente meteu mão na boca, sacou aquela dentadura que mais estava atrapalhando do que ajudando na sua função e soltou em cima da mesa do bancário. Minha mãe pegou aquilo num pulo e pediu que ele guardasse. Ele percebeu a gafe e comentou que não tinha "modos de cidade".

 O Abrilino se enquadrou perfeitamente naquela metáfora de avestruz . E sabe que esses bichos do campo não tem lugar na cidade, nem nos parques de exposição. Lá na campanha ainda dá pra seguir meio fugido, convivendo entre gente e criações, cruzando cerca e migalhando o sustento.

  Lembrei de falar dele nesse setembro de gauchadas, depois do agosto da Expointer, locais onde esse ñandú campeiro não passa. Pensei nele bastante também na época que escrevia minha dissertação, falando dos tipos sociais do pampa e suas relações, para além das estâncias. Era um compromisso a descrição do pampa não apenas como o lugar dos arreios sobre cavalos, pra gado e ovelhas, mas também dos rincões e corredores da gente que desencilha o pingo (próprio ou alheio) e segue na enxada. Essa gente que está lá sempre que chegarmos, pois tem muito mais legitimidade de dizer que são pampeanos, assim como os ñandús e tatús peludos (que não são estrangeiros como as vacas, os cavalos e os estancieiros).

6 comentários:

  1. Belo texto. Não esqueçamos que o bife com farinha e ovo continua sendo à milanesa, apesar de não ter sido feito em Milão. O "campeiro" urbano, tão contestado, não passa de uma homenagem, uma referência... o cavalo e a vaca não diminuem o tatu peludo, que continua pampeano e, na verdade, dando sentido a estes estrangeiros que sentem orgulho em se considerar campeiros. Abraço cinchado!

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    1. Gracias pela contribuição, Leandro!! Reafirmo que nesse contexto nem sempre é possível ser tão bucólico e ingênuo, pois a vaca e o cavalo diminuem sim os tatús e emas, companheiro... não esqueça foi em nome da produção em escala, do agronegócio e dos gigantes dos sistemas de agroalimentares que o processo de modernização conservadora devastou e ainda arrasa banhados, matas nativas e solos frágeis por todo o interior do estado. Ademais, a contestação aqui não passou nem perto do contexto urbano, estava mais pelas margens do rural, de quem mesmo fazendo parte daquele cenário não é considerado campeiro.

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  2. Parabéns Andréia, literatura com análise social. Belo texto, aprazível, instrutivo, reflexivo, instigante, subjetivo. Diz muito sem ter que dizer tudo, como tem que ser nos contos. Gostei muito, continue escrevendo, acho que uma nova geração de contos gauchescos, uma que contasse destes sujeitos invisíveis e silenciados pelo gauchismo fordista que temos hoje, poderia ser capitaneada por ti. E nos traga mais destas histórias ainda não contadas.

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    1. Gracias pela importância dedicada ao tema e atenção dispensada a essa reflexão provinciana. Grande abraço, professor!!!

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  3. O Pampa que me contaram é um nobre tapete onde pisam os locutores pilchados de surrealidade; escamoteando para baixo do relvado o que, para este crivo, não carece ser notado.
    O Pampa que conheci, o do Abrilino, tem outros valores de nobreza, outras réguas de medir grandeza. Onde a solitude aterrorizante à qualquer ser dependente de requintes, oprime o surreal! Convida ao natural! Desprotagoniza-te! Coloca-te no lugar! Obriga-te a olhar pra dentro!
    E por fim, o Pampa que me contaram tinha razão mesmo, nem carece ser notado...

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